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IA, Corrupção e Governança Pública

 

Recentemente, acredite se quiser, a Albânia deu um passo que muitos considerariam impensável, nomear um ministro virtual para lidar com as compras públicas.  Chamado de Diella e, segundo as vozes do governo albanês ela será imune a pressões, favores ou ameaças, e fara transcorrer todas as licitações públicas com a frieza dos dados.

É de se destacar que a Albânia não é um país qualquer para esta experiência, visto que a sua democracia jovem e sofre de uma muito recente história de clientelismo e corrupção e tem como propósito acelerar a sua entra na União Europeia.

Se alguma coisa pode melhorar a qualidade de sua democracia, não são mais discursos, mas melhores processos. E a inteligência artificial, bem utilizada, pode ser uma ferramenta muito boa para o monitoramento de processos.

A novidade do anúncio não surge do nada: Diella começou este ano como assistente na plataforma e-Albania atendendo cidadãos e empresas, e agora se anuncia como chefe de compras públicas com a promessa de “compras 100% livres de corrupção”. A pergunta óbvia é como: que controles humanos, que auditoria pública, que defesas precisamos contra a possível manipulação do próprio sistema? O governo ainda não detalhou esse desenho institucional, que é um ponto crítico que não pode ser deixado no ar.

A inteligência artificial pode realmente ajudar contra a corrupção na contratação? Sim, se você fizer a coisa simples primeiro, procurar detectar anomalias. Os contratos públicos produzem uma enorme quantidade de dados: cadernos de encargos, lotes, ofertas, cancelamentos, unidades de custo, adjudicações, modificações, certificados, pagamentos. Com esses dados, qualquer sistema minimamente sério pode marcar padrões suspeitos: licitações com um único licitante em excesso, repetidas retiradas imprudentes dos mesmos licitantes, rodízio de adjudicações entre empresas relacionadas, modificações tardias que inflacionam os preços, unidades de custo que disparam em relação ao seu histórico, redes de fornecedores e procuradores que convergem sempre nos mesmos contratos. Não precisamos de ficção científica: precisamos de higiene de dados, regras claras e rastreabilidade.

Não é apenas teoria e, de fato, já existem experiências que funcionaram em ambientes hostis e altamente complexos. A Ucrânia abriu seus dados de contratação com o ProZorro e articulou uma comunidade cívica, Dozorro, que usa algoritmos para sinalizar contratos arriscados e levá-los às autoridades. O resultado foi um ecossistema de vigilância distribuído com dados abertos, algoritmos e cidadania, que muitos países olharam com inveja, mesmo com o país em plena guerra.

A constante, que permite o desenho do padrão verificável, com a possibilidade comparativa universal pela pelo extremo acesso e disponibilidade de dados comparativos.  Dados públicos padronizados, regras auditáveis e participação social. Ou seja, exatamente o oposto de um “oráculo” opaco, onde poucos podem ter acesso, e nasce ai o maior medo, embora que seja uma tendência irrefreável, ainda que no caso brasileiro, possamos assistir a alguns retrocessos, como nessa semana, onde a Câmara aprovou em regime de urgência uma proposta de Emenda Constitucional que é um retrocesso a transparência e ao controle dos nossos mandatários.

Essa abordagem pode ser especialmente valiosa em democracias jovens, porque a corrupção não é um acidente lá: é um sistema de incentivos que é herdado, aperfeiçoado e naturalizado. Diante disso, a inteligência artificial não é uma varinha mágica, mas pode ser um agente de atrito que encarece o engano, reduz a discrição e torna visível o que antes era opaco. Se cada arquivo deixa um rastro imutável de decisões, se as regras de classificação e pontuação são explicáveis e o modelo é verificável e auditado, o político ou o funcionário não decide mais nas sombras: ele decide à vista de todos. Nesse contexto, o ceticismo social registrado nas crônicas sobre Diella (“até a inteligência artificial será corrompida”) é saudável e necessário, mas deve ser canalizado para exigir desenho institucional, não para descartar a ferramenta.

O perigo, logicamente, não é a inteligência artificial, mas sua possível captura institucional. Uma inteligência artificial “ministradora” pode ser tão corrupta quanto o arquivo CSV que a alimenta ou tão arbitrária quanto o código que não podemos ver. Portanto, se a Albânia quer que Diella seja mais do que apenas um gesto, deve anunciar desde o primeiro dia a publicação proativa em formato OCDS de todos os dados do ciclo de contratação, regras de risco documentadas e verificações e métricas de anomalias, os registros públicos datados de cada decisão (assinaturas de tempo), auditorias externas e se possível recompensas por detecção de bugs.

Para o modelo, uma janela cívica para desafios rápidos quando o algoritmo está errado, e incompatibilidade absoluta entre funcionários públicos e fornecedores para fechar o circuito de um possível conluio. Se algum desses pontos falhar, não haverá “ministro” que valha a pena., e isso se aplica a qualquer lugar, seja na albânia ou nas licitações municipais do lixo.

O desafio é político e cultural, pois se deve aceitar que, a partir de agora, todos os valores, sejam euros ou reais atribuídos sejam expostos e que cada excepção tenha de ser explicada. E essa é precisamente a linha que separa as democracias em amadurecimento das democracias estagnadas.

Eu prefiro um sistema que seja rastreável e corrigível a um que não deixe rastros. A oportunidade, tanto para a Albânia quanto para quem quiser copiar o modelo, não é ter um ministro com rosto digital, mas sim transformar a licitação em um conjunto de dados públicos.

Um país que nomeia inteligência artificial para monitorar contratos não está “substituindo políticos por máquinas”: está reconhecendo que, onde há regras e dados, a disciplina algorítmica funciona melhor do que a discrição, desde que esses sistemas sejas transparentes e acessíveis a toda sociedade.

Charles M. Machado, Advogado, Professor e Consultor, no Brasil e no Exterior em Tributos e Mercado de Capitais.

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