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A Estética das Guerras e a Contribuição das Ciências Sociais à Revolução da Ternura

Por: Vilmar Dal

É recorrente, na contemporaneidade, o reconhecimento dos avanços qualitativos e quantitativos proporcionados pelo progresso científico e pelas inovações tecnológicas nos mais diversos âmbitos da vida social — notadamente nas áreas da saúde, da educação, da engenharia e da comunicação. A mais recente revolução digital inaugura uma nova etapa do desenvolvimento humano, marcada por inovações notáveis, como a nanotecnologia, o metaverso e, mais recentemente, a inteligência artificial. Tais ferramentas, frutos da criatividade humana, possuem elevado potencial transformador, sendo capazes de promover o bem-estar individual e coletivo. No entanto, tornam-se igualmente perigosas quando desvinculadas de uma formação ética sólida e de um desenvolvimento integral do ser humano.

A tecnociência, quando manipulada de forma anônima e submetida a uma lógica de mercado impessoal — a chamada “economia sem rosto” —, corre o risco de produzir mais exclusão do que inclusão. Embora promova a conectividade global, essa mesma tecnologia pode aprofundar distâncias sociais, culturais e existenciais. Quando os interesses econômicos não são confrontados por princípios éticos universais, o resultado é a naturalização do descarte, da indiferença e da marginalização de sujeitos e grupos inteiros.

Além disso, a ausência de uma autoconsciência crítica acerca dos limites do poder técnico-científico pode conduzir à repetição de eventos trágicos do século XX, como os bombardeios atômicos e o uso instrumental da ciência por regimes totalitários — nazismo, comunismo e outras formas de autoritarismo ideológico. Tais precedentes demonstram que o progresso material não garante, por si só, o aprimoramento moral ou civilizacional.

No cenário geopolítico atual, os conflitos armados revelam uma dimensão ainda mais perversa dessa tecnocracia bélica: o espetáculo da violência transmitido em tempo real. Drones, mísseis e operações militares são exibidos como demonstrações de hegemonia e poderio estratégico, compondo uma verdadeira estética da guerra — um “Big Brother” globalizado — que banaliza o sofrimento e transforma a barbárie em objeto de consumo midiático. Nesse contexto de insegurança da comunidade global, o crescimento tecnológico e econômico não são suficientes para conter algumas realidades hodiernas, tais como: a mobilidade humana forçada, que atinge níveis alarmantes; o número de pessoas em situação de rua nas metrópoles globais (inclusive em cidades do hemisfério Norte); e a crescente insegurança nos ambientes públicos. No campo psicológico-existencial, o medo, o estresse e a depressão tomam conta das mentes e dos corações daqueles que vivem nos chamados “países ricos”.

Vivemos na era do conhecimento e da informação — marcada por uma abundância de dados, algoritmos e diagnósticos —, mas carente de conhecimento comsabedoria (do grego sophia). O déficit ético que atravessa nossas sociedades exige uma revalorização urgente das Ciências Humanas e Sociais — as Humanidades — não apenas em seus respectivos campos de estudo, mas como horizonte epistemológico capaz de confrontar os discursos do eficientismo totalizante, do lucro da pólvora e da técnica pela técnica. Em tempos de crescente desumanização e midiatização dos conflitos, essas disciplinas revelam-se essenciais para resistir à banalização da indiferença, que transforma o cidadão em mero espectador anestesiado, domesticado por algoritmos e “milícias digitais” que prosperam e lucram com o conflito.

Mais do que nunca, torna-se necessário afirmar o valor formativo e transformador das Humanidades como condição indispensável para a construção de sociedades mais justas, conscientes e verdadeiramente humanas. Contudo, impõe-se uma reflexão crítica sobre os próprios saberes científicos sociais, quanto aos métodos e paradigmas epistemológicos assumidos para análise, discernimento e diagnóstico dos fenômenos que fervilham na realidade contemporânea e incentivam o conflito, a desintegração, a deterioração da qualidade de vida humana e a degradação social.

Refiro-me, especificamente, à lógica do conflito, que tende a fomentar uma “cultura da morte” e influencia processos decisórios nos âmbitos públicos e privados. É preciso reconhecer que, até mesmo o conjunto de saberes que compõe o estatuto do conhecimento das Ciências Sociais, não está imune a essa lógica de fragmentação da existência humana e da convivência social. O conflito não pode ser ignorado ou dissimulado: ele existe e, justamente por isso, ajuda o cientista social a compreender que não deve se encurralar dentro de uma perspectiva fragmentada, cuja conjuntura conflitiva pode levar à perda da unidade profunda da realidade e do objeto em estudo.

Quando a reflexão social se torna prisioneira da lógica do conflito, seus diagnósticos e práticas tendem a reproduzir suas próprias confusões e insatisfações, perpetuando a lógica da violência nas relações interpessoais e institucionais. Assim como a violência recruta a economia e a política para lucrar, também tende a contaminar as Humanidades com um racionalismo utilitarista, egoísta e punitivista. Dentro dessa lógica, acentua-se a ideia da punição, do revanchismo e da tensão entre opostos, em que as rivalidades são conduzidas à sua potência máxima, podendo, quando não superadas, levar ao extermínio simbólico (ou real) do outro.

Diante desse cenário, cabe às Humanidades, no interior de seus próprios estatutos epistemológicos, desenvolver uma concepção reflexiva de comunhão nas diferenças. Com o termo “comunhão”, não se pretende aqui um sentido místico ou religioso, mas sim a construção de um espaço comum de abertura e trocas, capaz de harmonizar diversidades e oposições, promovendo uma diversidade reconciliada.

Ressalta-se que a reconciliação não é um processo fácil ou automático, e que ela não pode ocorrer senão por meio do diálogo. Este é o caminho mais adequado para conhecer e reconhecer o sentido profundo da singularidade do outro, e de como essa singularidade se estrutura em relação (e em oposição) às demais realidades, e como elas coexistem.

No entanto, chegamos a um ponto crucial: a política e a economia estão dispostas ao diálogo? Os países em conflito estão abertos ao diálogo? A ciência e seus procedimentos metodológicos, orientados pela eficiência, estão dispostos a dialogar com saberes considerados por demais contraproducentes, como a filosofia e a ética social? As Humanidades estão dispostas a assumir um novo paradigma de reflexão e ação, no qual espaços marcados por desintegração, conflito e revanchismo possam ser transformados em espaços de integração, concórdia, reconciliação e benevolência recíproca? Ou será que insistir no diálogo tornou-se um esforço enfadonho e, de certo modo, constrangedor, por exigir o enfrentamento de “resistências interiores” já profundamente enraizadas? Ou ainda, pelo risco de revelar uma imagem de fragilidade e/ou fracasso em gestos de concessão e flexibilidade em perspectiva de reconciliação?

O diálogo interpela o ego e o narcisismo daqueles que dele participam, os quais, muitas vezes, respondem com poder bélico, tecnológico e econômico — ou ainda com insultos, censura ao contraditório e uma pseudo-aceitaçãoque apenas tolera, mas não integra.

Isso, no entanto, não invalida o fato de que o diálogo, enquanto método, tem como finalidade a construção de uma sociedade justa, com memória e sem exclusões. Tal tarefa deve ser realizada com profunda humildade social e com o empenho em uma cultura que privilegie o encontro genuíno — e não o desejo de vingança, eliminação do diferente ou ostentação de poder.

É necessário, sobretudo, insistir em uma revolução da ternura. Uma revolução que transforme as consciências e o mundo a partir de dentro e do mais profundo. Uma reconciliação com o outro e com outro tipo de progresso: menos vingativo, menos punitivo, menos mercantilista, e mais sensível à amabilidade. E é nisso que insisto: na amabilidade que gera consensos. Essa amabilidade, longe de uma concepção puramente intimista, torna-se a força motora de um novo orientar-se. A amabilidade, enquanto característica relacional, não é atributo da técnica, mas da humanidade — é a única força capaz de orientar a consciência e converter espaços de desconfiança e conflito em ambientes de participação e cooperação.

Compreendida assim, a amabilidade, orientada pela reta razão, representa uma libertação da crueldade que penetra as relações humanas, fragiliza os laços interpessoais, condena, julga e pune. Muitos espaços decisórios, seja por conveniência política ou por interesse econômico, não conseguem avançar em pautas fundamentais para a humanidade, como a paz social. No entanto, a amabilidade não pode ser considerada um detalhe insignificante por aqueles que buscam consenso e reconciliação.

Enquanto os sistemas de poder continuam a mediatizar conflitos e a ostentar domínio por meio da violência, desintegração e intimidação, as Ciências Humanas e Sociais devem recusar essa lógica — inclusive nos seus próprios métodos e formas de análise. Ao contrário, devem insistir, com base na razão e em argumentos éticos, na superação da lógica do conflito excludente. Isso não se confunde com passividade ou conformismo social, mas sim com um compromisso convicto com a construção de uma cultura de paz.

Assim, não deixemos que nos roubem a amabilidade e a paz. Não permitamos que prevaleça a cultura da pólvora.