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O início da era da “dominância legislativa”?

CARLOS RENATO LAUZ PETIZ JUNIOR – Relações Governamentais e pesquisador em risco político.

Com a evolução das emendas parlamentares, o Executivo perdeu o poder de pautar o debate Legislativo​

Existe um fenômeno estudado pelos economistas chamado “dominância fiscal”. Como se sabe, o objetivo principal de um Banco Central é manter a inflação sob controle com o fim de garantir a estabilidade do poder de compra da moeda e o valor do dinheiro. Para cumprir essa missão o BC é responsável por gerir a política monetária, e o seu principal instrumento nessa tarefa é a definição da taxa básica de juros da economia, conhecida no Brasil como taxa Selic.

A habilidade em dosar o aumento da taxa de juros de modo a ser suficiente para frear a inflação, mas sem paralisar totalmente a economia, é um dos grandes desafios de bancos centrais ao redor do mundo. Contudo, em países com dívida elevada e alto índice de déficit público pode ocorrer a situação na qual a política fiscal – o gasto público – é que passa a ser o principal indutor da inflação. Em outros termos, o Governo despeja tanto dinheiro na economia por meio do gasto público que o aumento da taxa de juros torna-se ineficaz. O Banco Central fica sem sua principal arma na definição da política monetária e perde o controle sobre a condução da inflação no país. Essa situação atípica é chamada pela teoria econômica de “dominância fiscal”, uma vez que a política fiscal passa a dominar a condução da inflação no lugar da política monetária.

Embora ainda haja alguma discussão acadêmica sobre sua real existência, trago esse conceito pois ele ajuda a ilustrar um outro fenômeno que ocorre na política nacional, mais exatamente a perda do controle historicamente exercido pelo Poder Executivo sobre o Legislativo no nível federal, no que podemos definir como o início de uma “dominância legislativa”.

No Brasil, o Executivo sempre se mostrou capaz de guiar os rumos do debate no Legislativo utilizando o acesso a recursos públicos como moeda de troca por apoio político aos seus projetos, principalmente por meio da construção de coalizões políticas e loteamento de cargos públicos (que por sua vez facilitam ou garantem melhor acesso a recursos públicos), no arranjo institucional conhecido como “presidencialismo de coalizão”, na expressão cunhada por Sérgio Abranches.

Uma ferramenta complementar à formação da coalizão que se mostrou de extrema importância ao longo dos anos é a distribuição direta de recursos públicos por meio de emendas parlamentares. Com as emendas, o parlamentar destina recursos diretamente do orçamento da União para uma ação orçamentária específica em uma região de sua escolha.

O processo de execução de uma emenda – ou seja, a efetiva liberação do recurso – contudo, sempre foi conduzido de acordo com a discricionariedade do Poder Executivo conforme a fidelidade do parlamentar na aprovação de projetos de interesse do governo. Assim como na política monetária pilotada pelo Banco Central, a hábil dosagem na liberação de emendas em favor de deputados e senadores tornou-se peça chave na estruturação e manutenção da coalizão político-partidária e, consequentemente, no sucesso ou fracasso da agenda legislativa apresentada pelo Executivo em todos os governos desde a redemocratização.

Nos últimos anos, porém, o Legislativo, para se ver livre da constante necessidade de barganha – também vista como uma forma de submissão a outro Poder – aproveitou-se de momentos de fraqueza do Executivo para, em 2015, tornar impositiva a execução das emendas individuais, que a partir de então deveriam ser obrigatoriamente pagas independentemente de negociações políticas. Já no orçamento de 2016 foram incluídas também as emendas de bancada, que por sua vez se tornaram impositivas em 2019. Ainda naquele ano foi aprovada a PEC 105, que permitiu a alocação das emendas individuais impositivas por meio de transferências especiais, isto é, com os recursos sendo repassados diretamente ao ente federado beneficiado, sem necessidade de convênio e, portanto, com total independência da máquina federal.

Um claro reflexo da perda de poder do Executivo foi a criação de um novo tipo de emenda, as chamadas emendas do relator, identificadas pela sigla “RP9” e que são apresentadas pelo relator-geral do projeto da lei orçamentária. O surgimento das emendas do relator, articulado em 2019 para o orçamento de 2020, é um sintoma da falta de instrumentos de negociação por parte do Governo após as emendas individuais e de bancada terem se tornado impositivas e saído do campo de discricionariedade do Executivo.

Paralelamente ao movimento desvinculação das emendas e criação da “RP9” houve um aumento extraordinário de recursos destinados a esse tipo de despesa. Segundo dados do Portal da Transparência, o valor destinado à emendas parlamentares pulou de R$ 3,3 bilhões em 2015 para R$ 35,1 bilhões em 2021, ano que consumiu mais de 50% do orçamento federal para investimentos. Somente para as emendas do relator foram previstos nada menos que R$ 18,52 bilhões, mais da metade do montante total destinado a emendas, o que demonstra o peso dado à nova ferramenta de articulação política.

Esse movimento coincide com a opção do Governo Bolsonaro (PL) de abandonar o sistema de coalizões e negociar a pauta legislativa de forma temática e individual com os parlamentares. Na prática, sem a tradicional montagem da coalizão partidária e com perda de poder das bancadas partidárias, antes responsáveis por orientar os votos dos membros do partido, essa escolha por negociações individuais levou à supervalorização da “moeda” de liberação de recursos via emendas. Mas com as principais emendas sendo impositivas, o Executivo se viu compelido a criar uma nova forma de destinação de recursos com o qual pudesse retomar o controle sobre sua base parlamentar.

Mas a estratégia governista não parece ter se refletido em fidelidade partidária nas votações de matérias do seu interesse. Um levantamento do Observatório do Legislativo Brasileiro relativo à Câmara dos Deputados mostra uma progressiva autonomia da Casa. O índice de “Sucesso do Executivo”, que indica a proporção de proposições apresentadas pelo Poder Executivo e aprovadas no mesmo ano em relação a todas as proposições apresentadas à Câmara, alcançou em 2021 o seu patamar mais baixo da séria histórica. Segundo os dados, o Governo conseguiu aprovar apenas 29,1% dos projetos que enviou à Câmara neste ano, o pior desempenho desde a redemocratização. Em 2019, primeiro ano do atual Governo e quando ainda não haviam as emendas “RP9”, somente 30% dos projetos enviados à Câmara foram aprovados.

Ao mesmo tempo, nunca o Governo orientou tanto sua bancada nas votações na Câmara. Somente em 2021 ocorreram 665 votações com orientação encaminhada pelo Governo, quase o dobro do ano anterior e correspondentes a mais de 73% das votações ocorridas na Casa. Outro número que chama a atenção é o índice de divisão em votações nominais, que apresenta o número de votações com resultado acirrado e está no segundo ponto mais baixo da série histórica. Em outras palavras, o Governo se esforça para orientar a bancada mas não consegue fazer sua pauta andar, e conta com uma margem apertada entre os Deputados mesmo com a ampla distribuição de recursos.

O resultado é que pautas consideradas prioritárias para o Governo desde o início do mandato, como as de costumes e as reformas administrativa e tributária, foram em grande parte ignoradas pelo Congresso, que preferiu focar em outros projetos, principalmente da área econômica. Segundo levantamento de O Globo, de uma lista com 35 projetos que o governo considerava prioritários, apenas 13 foram aprovados nas duas Casas (37%), todos da área econômica. E mesmo nesse campo os temas foram votados de forma independente do Governo, muitas vezes desvirtuando os projetos originais, como no caso da privatização da Eletrobrás, aprovada com dezenas dos chamados “jabutis”.

A conclusão que se chega é que, ao tentar estabelecer uma nova dinâmica na relação com o Parlamento o Executivo não apenas teve que retornar à estratégia anteriormente consagrada, com a formação de uma coalizão partidária mínima, como demonstra a recente filiação do Presidente ao Partido Liberal, um dos líderes do “centrão”, como também perdeu o controle de sua segunda ferramenta mais importante, o acesso ao orçamento.

A destinação recorde de recursos para emendas, parte delas impositiva e parte delas sendo negociadas por meio do relator do orçamento e do Presidente da Câmara, além de não criar uma base fiel e atuante, permitiu aos parlamentares desvincularem-se das pautas do Executivo – muitas delas consideradas tóxicas pela ala não alinhada ideologicamente ao Governo – e decidirem eles mesmos quais as matérias relevantes para votação.

Retornando ao paralelo com o conceito da “dominância fiscal”, tal qual um Banco Central cuja política monetária torna-se ineficaz devido à dominância da política fiscal na condução das expectativas de inflação, o Executivo também viu seus principais instrumentos tornarem-se ineficazes para guiar o debate legislativo, passando a ser mero expectador de um Congresso que, imbuído de inéditos protagonismo e poder orçamentário, define a pauta legislativa de acordo com seus próprios interesses, em um cenário de “dominância legislativa”.

CARLOS RENATO LAUZ PETIZ JUNIOR – Relações Governamentais e pesquisador em risco político; graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); MBA em Relações Governamentais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV IDE-SP); atualmente é Diretor na Secretaria Executiva de Integridade e Governança do Estado de Santa Catarina.