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A mentira na política na era da internet

Ao ordenar o pensamento para participar, com extrema satisfação, do painel A mentira na política na era da internet, no XIV Congresso de Direito da UFSC, recordei-me de um caso emblemático, ocorrido em 1990, nas eleições para o Governo do Paraná, capaz de ilustrar meu pensamento inicial.

Roberto Requião disputava a eleição com José Carlos Martinez, e então apontado como favorito pelas pesquisas. Uma semana antes da votação em 2º turno, o programa eleitoral gratuito de Roberto Requião cedeu espaço para uma pessoa chamada Ferreirinha, que por trás de óculos escuros e boné se identificou como matador de agricultores a serviço da família Martinez. O candidato Requião acabou vencendo as eleições, contrariando as pesquisas à época, talvez por influência desse episódio (não se pode afirmar categoricamente!).

Antes mesmo da posse, as investigações policiais já comprovavam que Ferreirinha era, na verdade, o motorista Afrânio Luis Bandeira Costa. Com base na descoberta, o Tribunal Regional Eleitoral do Paraná concluiu que houve grave infração eleitoral e cassou o mandato de governador de Roberto Requião, que nem sequer havia tomado posse do cargo. Roberto Requião recorreu ao Tribunal Superior Eleitoral, obtendo o direito à posse e, mais tarde, a anulação do processo por vícios processuais[1].

O exemplo acima demonstra que o uso da mentira em eleições não é situação nova, assim como não é de hoje que o uso indevido de fatos inverídicos pode influenciar no resultado das eleições. São inúmeros os exemplos que poderiam ser aqui ventilados, no âmbito local, estadual e nacional.

De fato, a mentira pode envolver a (i) afirmação de fatos falsos, a (ii) negação de fatos verdadeiros e a (iii) dissimulação de fatos verdadeiros para a criação de uma história inverídica. A mentira, em qualquer das suas facetas, sempre objetivará levar em erro o interlocutor, para que detenha uma conclusão falsa.

A reflexão sobre a mentira na política é tema abordado pela filosofia e ciência política de longa data. Na obra A República, de Platão, refletiu-se sobre o uso da mentira pelos governantes. Maquiavel, em seu O Príncipe, também desdobrou a relevância da mentira como mecanismo de governo. No século XVII, o escritor e diplomata inglês sir Henry Wotton definiu um embaixador como sendo um homem honesto enviado ao estrangeiro para mentir por seu país[2].

Mais recentemente, autores como John Mearsheimer, da Universidade de Chicago, trabalharam com profundidade as várias facetas da mentira e suas nuances no campo da política nacional e internacional. Sugere-se a leitura da obra Por que os líderes mentem: toda a verdade sobre as mentiras na política internacional. Também oportunas as reflexões feitas por Yuval Noah Harari, em sua recente obra intitulada 21 lições para o Século 21, onde desnuda o mito da pós-verdade.

A questão trazida a debate é a mentira no campo político, mais especificamente na sua influência no cenário de grande uso da internet, como se deu nas eleições americanas de 2016 e no Brasil em 2018.

E a questão mostra-se de grande relevância diante do crescimento do uso das redes sociais. A Pesquisa Brasileira de Mídia 2016[3], realizada pela Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República, aponta que 49% dos brasileiros já usam a internet como meio de informa-se sobre o Brasil, atrás tão somente da televisão, o que demonstra o impacto de eventual manipulação das informações nesse ambiente virtual.

Se a mentira e sua utilização no campo eleitoral, inclusive com reflexos no resultado de eleições, não são tão novos assim, seu uso através das ferramentas digitais como o facebook, whatts’app, twitter e instagram ganharam dimensões assustadoras, justamente pela rapidez e alcance da informação. Em suma, está-se diante de um dilema de grande complexidade, envolvendo valores muito caros ao regime constitucional brasileiro: de um lado, a liberdade de expressão, que inclui a liberdade de imprensa; de outro, o regime democrático, que inclui a necessária regularidade do pleito eleitoral.

Esse é o dilema enfrentado a nível mundial, e, mais especificamente, pelo Brasil a partir das eleições de 2018.

É bem verdade que desde 2009 tem-se promovido modificações na legislação eleitoral com o intuito de melhor regrar o uso da internet nas eleições, a exemplo das Leis nº 12.034/2009, nº 12.891/2013 e nº 13.488/2017, que alteraram a Lei das Eleições (nº 9.504/1997). Esta última, aliás, permitiu o impulsionamento de propaganda eleitoral pelos candidatos ao pleito eleitoral, vedando o impulsionamento de fake news e materiais com conotação negativa em face de outros candidatos (vide art. 57-B e 57-C da Lei nº 9.504/1997).

Enfim, tanto o Congresso Nacional como a própria Justiça Eleitoral buscam mecanismos de melhor regramento do fluxo de informações na internet no âmbito eleitoral. Repito: essa é uma preocupação a nível mundial, de complexo equacionamento, diante dos valores jurídicos envolvidos e do dinamismo tecnológico, associado a problemas de direito internacional (local dos provedores, origem das informações falsas etc).

Dessa forma, a simples criminalização da divulgação de propaganda eleitoral sabidamente inverídica, a exemplo do que ocorre no art. 323 do Código Eleitoral, não resolve o problema, como bem posto pelo professor Fernando Neisser em sua dissertação de mestrado[4]. A resolutividade é baixa, gerando, inclusive, o desprestígio do Poder Judiciário. Em suma, a criminalização da referida conduta não afastou sua prática.

Da mesma forma, inútil – e inconstitucional – a proibição do uso da internet, das redes sociais ou da imprensa manifestar livremente sua opinião, antes e durante o pleito eleitoral. Tal prática não encontra amparo no nosso regime constitucional brasileiro, que resguarda a liberdade de expressão e de imprensa como pilares do regime democrático. Aliás, abre-se parênteses: decisões como a prolatada pelo Ministro Alexandre de Moraes em face da revista Crusoé e do site O Antagonista, proibindo a divulgação da reportagem “Amigo do amigo de meu pai”, devem ser fortemente criticadas pela sociedade, pois desvirtuam valores caros salvaguardados pela Constituição. É inadmissível que qualquer agente público revigore a censura e tolha a liberdade de imprensa, quiçá um Ministro do Supremo Tribunal Federal. Que se apure e puna com rigor o vazamento ilegal de colaborações premiadas e outros documentos sigilosos, prática infelizmente sistêmica no país e que conta com certa conivência de parcela das autoridades públicas. Portanto, o Ministro Alexandre de Moraes equivocou-se no caso concreto, pois o combate não deve dar-se no campo da liberdade de expressão, mas, sim, do dever de sigilo[5].

Voltando ao tema principal, o certo é que mentiras ditas por políticos fora do ambiente eleitoral não causam, em regra, os mesmos efeitos que aquelas falsas informações propaladas durante o pleito eleitoral. Exemplificando, quando Donald Trump afirma que perdeu para Hillary Clinton no voto popular por causa dos milhões de imigrantes ilegais, mesmo que esses não votem nos EUA[6], tal inverdade não possui o mesmo componente destruidor que aquela fake news disseminada nas redes sociais durante o pleito eleitoral contra a candidata Hillary, de que a mesma teria vendido armas para o Estado islâmico ou de que o Papa Francisco haveria declarado apoio a Donald Trump.

No âmbito nacional, já nas eleições presidenciais de 2014 presenciou-se o uso de robôs e perfis falsos na internet com o intuito de influenciar o eleitor. Conforme estudo realizado pela Diretoria de Análises de Políticas Públicas (DAPP) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), denominado de Robôs, Redes Sociais e Política no Brasil, redes de perfis automatizados já compartilharam intensamente conteúdos elaborados durante a campanha presidencial de 2014, o impeachment de 2015, as eleições municipais de 2016 em São Paulo, a greve geral de 2017 e a reforma trabalhista de 2017[7].

No âmbito das eleições de 2018, algumas fake news também tiveram grande repercussão no âmbito nacional. Contra Fernando Haddad, lembro do caso envolvendo a notícia de que Adelio de Oliveira estava em ato pró-Lula e Manuela D’Ávila usou camiseta com frase “Jesus é Travesti”. Contra Bolsonaro, cito as notícias de que Geraldo Azevedo foi torturado por Mourão e da Jovem que foi marcada com uma suástica por simpatizantes de bolsonaro[8].

Por isso, penso que o caminho adequado é compreender, monitorar e combater a atuação orquestrada de grupos para difundir em massa informações falsas, uso de robôs, botnets e outros mecanismos que afetam a regularidade do pleito eleitoral, especialmente sob a perspectiva do abuso do poder econômico e da igualdade de oportunidades no pleito eleitoral. Como exemplo, o Tribunal Superior Eleitoral criou no final de 2017 o Conselho Consultivo de Internet e Eleições, composto por membros da Polícia Federal, do Ministério Público e do Poder Judiciário, entre outros[9], justamente para identificar tais situações que afetam a regularidade do pleito eleitoral.

Ações como as desenvolvidas pelos principais veículos de imprensa nas eleições de 2018 também se mostram eficientes no combate à desinformação, retratando o que é FATO e o que é FAKE no campo da internet. Se não resolve o problema, contribui efetivamente para sua atenuação.

Enfim, a mentira na era da internet ganha contornos ímpares, distintos daquela realidade vivenciada pelos cidadãos do Paraná nas eleições de 1990. Se é verdade que a internet naquele caso poderia expandir e catalisar a mentira, também é verdade que a mesma poderia ter sido o antídoto eficaz contra a mentira então propalada contra o candidato Martinez.

E muitos outros desafios nos aguardam para as eleições em 2020, a exemplo do big data e da inteligência artificial, capazes de criar “candidatos de prateleira”, moldados ao tempo e aos anseios do eleitor, tal qual uma operação aritmética, tornando cada vez mais pobre o embate de ideias e políticas públicas. É necessário regulamentar no cenário mundial o uso de dados, mesmo quando autorizados, por parte de atores como o Facebook e Google, justamente para que seu uso não se dê para fins de manipulação de pleitos eleitorais. No Brasil, o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) e, mais recentemente, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/2018) dão regramento ao tema, mas ainda carecem de maior efetividade e estão limitadas à jurisdição nacional.

Eliminar a divulgação de mentiras e verdades alternativas (parafraseando Kellyanne Conway, assessora de Donald Trump[10]) é trabalho de Sísifo, personagem da mitologia grega condenado a um esforço eterno e inútil. Não restam dúvidas de que inverdades, falsidades e informações dissimuladas serão disseminadas ao longo dos próximos pleitos eleitorais, com ou sem o uso da internet. Nesse campo, vale o pensamento de Goebells, ministro de comunicação de Hittler: “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”. O Direito, por si só, jamais solucionará tal realidade fática.

Concluindo, a liberdade de expressão e de imprensa deve ser preservada, devendo ser ressalvada tão somente para aquelas situações excepcionalíssimas, robustamente comprovadas como sabidamente inverídicas, especialmente durante o pleito eleitoral. Tal excepcionalidade jamais pode dar-se no campo da censura prévia, pois os malefícios podem ser maiores que os benefícios a serem alcançados. A liberdade requer responsabilidade, e essa responsabilidade passa, necessariamente, pela maior conscientização de cada cidadão eleitor. Sabe-se que isso é utópico, mas não pode ser perdido de vista. Por isso, a necessidade das instituições, como a Justiça Eleitoral, acompanharem de perto a lisura do pleito eleitoral.

Eis aqui a pedra de toque: compete ao eleitor deter discernimento próprio para avaliar e filtrar as informações a ele fornecidas, competindo aos órgãos e instituições tão somente afastar os abusos e as práticas manifestamente ilegais, que desequilibram o processo eleitoral e comprometem a democracia.

Evidentemente, trata-se de ajuste fino, muito delicado, de modo que se espera que os Poderes, em especial o Poder Judiciário, tenha discernimento e ponderação necessários para não praticar atos lesivos à própria liberdade individual de expressão e de imprensa. Não restam dúvidas, entretanto, que práticas organizadas de manipulação da informação no âmbito da internet devem ser combatidas e repudiadas, competindo ao Poder Judiciário atuar para tutelar e garantir a lisura do pleito eleitoral. De fato, estamos diante de um dos desafios do século XXI: a utilização adequada da informação e dos meios de sua ampla e eficaz divulgação. Parece ter razão Yuval Noah Harari quando adverte que “problemas globais exigem respostas globais”[11].

Marcos Fey Probst é advogado, doutor em Direito pela UFSC e sócio da Fey Probst & Brustolin Advocacia.